quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

ABSTRATO

Não me lembro da última vez que a observei maravilhado assim. Há muito venho me fechando para o resto do mundo, inclusive para ela. Estar sóbrio me ajuda a ver as coisas mais claramente. Agora já sei exatamente o que devo fazer. Embora ainda lute muito para me convencer a tomar uma decisão tão perturbadora.

Já passava das onze da noite quando ela chegou do trabalho. Eu estava sentado na poltrona da sala, com as luzes apagadas, vendo o jogo do Phoenix na televisão. Ela parecia esgotada e apenas deitou a cabeça sobre o meu colo, sem dizer nada e em poucos minutos adormeceu. Seus olhos, seus lábios, seu cabelo ligeiramente avermelhado... É, eu me lembro daquela época, quando eu não era um degenerado autodestrutivo.

A sala escura, a garrafa de whisky e o copo ao lado da poltrona, o cheiro da fumaça do cigarro no cinzeiro começa a me incomodar; é hora de parar, por hoje. Desligo a TV, é uma noite fria, eu a abraço, de certo modo. Inconsciente ou não, ela sorri suavemente. A garota de meus sonhos, a melhor parte dos meus dias, um oásis de paz em minha mente perturbada; havia eu me esquecido. Ela não.

A luz, que vem dos faróis dos carros que passam na rua, entra pela janela e quebra as trevas que me impedem de contemplá-la por inteiro. Tive todo o tempo do mundo e o desperdicei, agora me arrependo. Mas não há mais tempo para declarações de amor nem para pedir desculpas, nunca fui bom nisso. Ela está cansada. Cansada de mim, sei disso, embora ela não admita. E eu também estou.

Eu a carrego cuidadosamente em meus braços até o quarto, ela me abraça, de certa forma. Um beijo no rosto e ela adormece, agora na cama. Algumas roupas, meus dois pares de tênis, minhas velhas e empoeiradas graphic novels, minha surrada e vermelha fender stratocaster e meus últimos cigarros. É quase tudo o que eu tenho. O mais importante de tudo deixarei na cama, adormecida. 

Costumávamos cantar, eu tocava e ela cantava; ela queria cantar e era boa nisso. Então eu adquiri o dom de interferir, até ela desistir. A pior de todas as coisas ruins que eu fiz; estragar o sonho dela...

Caminho solitário pelas calçadas úmidas, sem rumo. Irei para o mais longe possível, até desaparecer, então ela poderá me esquecer. Um dia alguém me falou: "Se você ama uma pessoa, deixe-a livre". Agora talvez ela possa voltar a sonhar, porque o meu sonho acabou...


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